A Indústria Social e a Paixão
É normal, quando acabamos de conhecer alguém, falarmos sobre os nossos gostos musicais. No fundo – tal como acontecerá com o cinema ou a literatura – por aí poderemos começar a dar uma imagem de nós, a definirmo-nos perante o outro, fornecer uma primeira indicação de factores tão díspares quanto as raízes culturais, o grau de sofisticação, ou o nosso gosto. É nesse âmbito que habitualmente tenho de disfarçar um franzir de sobrolho quando obtenho como resposta à pergunta “de que música gostas?”, “de tudo!”. Ah, pois. A minha primeira reacção será pensar precisamente: “pois, quem diz de tudo diz de nada, não tens grande posição perante o assunto”. Se, à partida, é perfeitamente legítimo o gosto pela multiplicidade de sonoridades, também acaba por ser verdade que irei valorizar tal resposta apenas vinda de quem mostre uma cultura musical realmente sólida. Caso contrário, entendê-lo-ei apenas como uma resposta vaga e fugitiva, escamoteadora de uma falta de paixão.
Cultura musical, disse? De que estou a falar? É certo que a música é, em primeira linha, uma arte. Mas desde há muito tempo ela aparece-nos tão intimamente ligada a outros factores que a nossa relação com a música diverge para uma série de sinais sociais fornecidos sobretudo pela dimensão industrial que envolve as produções destinadas a um público global. Ou seja, acaba por não estar em causa de forma central a mensagem meramente sonora, a suposta qualidade musical em termos estritamente artísticos, quando queremos entender-nos quanto a essa solidez cultural. No fundo, e dito de uma forma mais simples, antes de podermos discutir se isto é melhor ou pior do que aquilo em termos musicais haverá que definir os nossos conhecimentos sobre o objecto do nosso discurso. A música folclórica – por mero exemplo – poderá encontrar muito poucos adeptos fervorosos dentre aqueles que agora lêem este texto. Mas se eu (que não é o caso) for especialista em tal estilo, poderei aí demonstrar uma cultura musical apurada a qual se sustentará por si, independentemente de quem me ouve ou lê se identificar com o prazer de ouvir tal estilo.
Serei, pois, culto quando conheço e entendo. Se gosto ou prefiro, a conversa é outra. E o universo de conhecimentos possíveis é, nesta matéria, gigantesco; muito maior do que o que é humanamente razoável dominar por completo. Mas quando gostamos mais deste ou daquele estilo, esse nosso gosto será tão mais legítimo quão mais conhecermos sobre aquele. Isso pode ter uma dimensão imediata, como saber identificar os trabalhos e os seus intérpretes e autores, e outras mediatas, que podem passar por conhecimentos biográficos sobre tais intérpretes, ou outros de enquadramento espacio-temporal.
Para quem a cultura musical é escassa, e ainda que sinta e diga que gosta de música e que ouve de tudo, será totalmente estéril ouvir um aficionado falar sobre a sua paixão, porque inevitavelmente irá deparar-se com um chorrilho de nomes que não consegue associar aos sons que lhe estão subjacentes. Para quem não é, a discussão irá situar-se ao nível da fruição, da troca de sensibilidades, com maior ou menor identificação através do prazer de ouvir, tornando-se muito difícil a partir daí escalonar os vários conceitos musicais devido à subjectividade do gosto.
Aí, resta-nos o prazer da partilha.
Neste espaço tentarei descobrir ou redescobrir com quem nos lê as dimensões da minha paixão pessoal pela música. A linha em foco será muito diversa da que tem alegrado esta página através da experiência de Yardbird, e por isso desde já o alerta.
Até breve!
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