quinta-feira, março 06, 2008

A 6 de Março de 1975

Avizinhavam-se tempos conturbados. Ou antes, há perto de um ano que o eram, porque chamar ao verão que se avizinhava de quente, isolando-o dos antecedentes, só mesmo a visão redutora de alguns “estoriadores”, ou a suposição distanciada de quem não os viveu.
Mas isso é mesmo outra história, e hoje estou aqui para reatar, e para relatar um dos episódios mais marcantes da minha relação pessoal com a música, e que teve lugar numa longínqua noite de Março de 75.
O meu amigo O, balconista de loja de tecidos de luxo da Rua Augusta, dissera-me uns tempos antes que os Genesis vinham cá. Na altura, as minhas preocupações eram mais familiares e de trabalho, tudo muito entrelaçado nas elucubrações políticas, mas a música tinha, como sempre, o seu tempo. E a notícia deixou-me quase sem fala. Para além de que, para mim e em certa medida, os Genesis a modos que terem tomado o lugar deixado vago pelos Beatles, até então, concertos “como deve de ser” eram uma miragem: antes do 25 de Abril, eram sempre as mesmas caras, pretensas vedetas do internacional-cançonetismo (uma das excepções,os Animals, tinham sido trazidos pelo Vasco Morgado já lá iam 10 anos), depois da celebrada data, os rumores sobre a situação política, cerceavam alguma vontade que houvesse de apresentar novidades.
Musicalmente, estava-se numa época de degenerescência do rock, com o pífio glam rock e o pomposo rock sinfónico a terem papel preponderante no panorama.
Devo dizer que, e pessoalmente, sempre considerei que musicalmente terá sido das épocas menos profícuas, embora meia dúzia de nomes - Zappa, Jethro Tull, Waitts, CSN&Y, Chicago, Pink Floyd e pouco mais - fossem alimentando as minhas necessidades melómanas.
Confesso a ansiedade que se apossou de mim, desde esse dia e a data do concerto. Principalmente desde a edição de “Selling England by the Pound” que era um indefectível da banda de Peter Gabriel, e o recente “The lamb lies down” tocava todos os dias no meu velho Onkyo. Tinha visto uns excertos de um concerto dos Genesis e tinha ficado quase petrificado pela espantosa e teatral actuação de Gabriel.
O dia, 6, foi passado em planeamentos que, estava mais que visto, só serviam para que o tempo passasse mais depressa. Apanhámos o comboio no Cais do Sodré com a aconselhada antecedência, previstas que estavam grandes enchentes, e jantámos num simpático restaurante perto do Pavilhão, e para lá rumámos depois. A multidão que se aglomerava nos acessos não augurava nada de bom. Os tropas que guardavam as entradas, olhavam para aquela mole humana e sabia que a bolha iria rebentar mais cedo ou mais tarde, e que as G3 que empunhavam não iriam dissuadir ninguém. E assim foi. Às tantas senti-me transportado para dentro do recinto no meio daquela vaga, havendo alturas em que nem pus os pés no chão. O meu amigo O, chegou a Lisboa com uma meia sola de sapato a menos. Bilhete? Veio intacto para casa, tal como tinha ido. O espectáculo? Algo de quase indescritível. Procurei um lugar perto do palco, ou pelo menos onde pudesse ver alguma coisa. Acabei por me safar, embora ficasse em equilíbrio instável em cima de duas cadeiras, um pé em cada uma e com um gajo que fazia dois de mim a apoiar-se no meu ombro. Lembro-me que na altura aquilo me pareceu aquelas pirâmides humanas dos circos. Até que a meio, aquilo veio tudo abaixo, e fiquei com uma perna entalada nas costas de uma cadeira, e só não a parti por milagre, ou qualquer outra coisa que lhe queiram chamar.
No ar, o cheiro a marijuana era absoluto, e estou em crer que muita daquela gente, pouco ouviu do irrepreensível recital de Gabriel, que desfrutei com um prazer imenso. O evoluir das estranhíssimas personagens de Peter através do emaranhado intenso das luzes estroboscópias, a história de Rael contada por aquela voz potente e inconfundível, apoiada no rigor musical de Hackett, Rutherford, Banks e Collins, foi quase uma celebração que me fez abstrair de tudo o resto que me envolvia.
Prevendo nova enchente, mal acabou o espectáculo, corri para o comboio, que me traria ainda meio zonzo, até Lisboa. A mim, e a muitos mais, porque só saiu da estação quando já estava a abarrotar. Até nas redes onde se punham as malas havia rapazes - raparigas havia poucas - a dormir, ou pelo menos assim parecia.

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